quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Da varanda

Daqui a um pouco de tempo, alguém vai olhar da varanda, sentado, e verá um muro. Talvez um portão.
Se houver varanda. E se houver onde sentar na varanda.

Daqui a um pouco mais de tempo, alguém vai olhar da sacada do apartamento em cima da antiga varanda, sentado, e verá, de cima pra baixo, a árvore ali da frente, a copa larga, velha, abrigo.
Se houver onde sentar na sacada. E se houver a árvore.

Daqui a um pouco mais de tempo, alguém, indo fechar a porta e a cortina da sacada do apartamento em cima da antiga varanda, porque em frente haverá outro prédio e não fica bem uma pessoa ver dentro do apartamento da outra, vai olhar de trás da porta, pelo meio da cortina, da sacada do apartamento em cima da antiga varanda, e não verá nada.

Os olhos que moraram naquela antiga varanda, sentados, namorando a rua, viram muito, viram tudo, viram a vida. É de uma responsabilidade inassumível sentar e olhar daquela varanda. E ver o jardim que criança não pode mexer, o pote de margarina de dar água pra passarinho, o balanço improvisado e o pote de margarina de pintar o muro de cor de água, de cor de muro. E ver as rosas. (Haverá rosas? Haverá quem veja as rosas?) E ver os vizinhos mais irmãos que os irmãos e as casas descascando as tintas das paredes, as folhas e flores e os barulhos dos carros. As folhas caindo pra alguém não varrer hoje que o sol está forte e, afinal, já lavaram com água o quintal de cimento. E ver o sol forte alegrando os passarinhos. E ver o sol se pôr, a vida começar e terminar. 

Os olhos que moraram naquela antiga varanda, sentados, namoraram a vida. E viram, cheiraram, escutaram, perceberam, silenciaram que a vida... isso tudo que se viu daquela varanda e que daqui a um pouco de tempo não se verá... é coisa tão pequena e tão grande. Tão muito e tão pouco. É coisa de se olhar por uma vida toda pra entender.

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Sobre o que o filme do Marighella mexeu em mim, sobre sair, sobre nosso jeito de viver, sobre descer a Augusta chorando, sobre fé

"Parece cada vez mais forte a ideia de sair. Nem que seja só pra ter a possibilidade de imaginar outro jeito de viver em que eu consiga ter fé"

terça-feira, 31 de julho de 2012

Lagartixa

Quando um ser humano que faz parte das nossas memórias, ou mais até, que guarda em sua existência mesma pedaços preciosos de memória... quando esse alguém "acaba", isso cria vontade de silêncio, papel e caneta. E faz desejar uma capacidade de guardar tudotudotudo numa memória infinita. Que não temos. E a gente perde. Perde a pessoa, perda uma parte da vida, que vai com ela. E ganha uma sensibilidade imensa para a vida que está e para a memória que estamos construindo todo dia.

Dizendo tchau com água-de-olhos e silêncio, escrevi isso, tia. Ó:

"A memória mora nos espaços, mas não prescinde das pessoas porque precisa da troca para manter-se viva.

A memória dá vida às pessoas que dão vida à memória que dá vida.

A memória mora na casa-de-vó, na cristaleira, nas palavras "alegria de viver" que nós trocamos, na louça lavada perfeita secando no sol - primeiro os copos! - mas vive mesmo no cheiro amargo-dooooce de café, no som doooce-amargo da voz que a gente sente/escuta mesmo que já não haja.
 
A memória dorme. E acorda pra viver diferente de novo. E de novo. E se despedaça. E de cada pedaço nascem memórias novas. Igual lagartixa."

Um pouquinho da memória que compartilhamos, o que coube, vive e se mexe aqui dentro de mim, tia. E, aliás, vai rodar comigo por aí, porque, você sabe e dizia: eu tenho rodinhas nos pés.

Perdido no caderninho vermelho...

... não me lembro mais de onde tirei... mas vou compartilhar assim mesmo:

"Tristeza não é desalento da alma, é um duende que ataca ao encontrar aberta a porta do desgostar de si mesmo. O remédio é recolher-se no silêncio e desamarrar um por um os cadarços do egoísmo até os pés poderem andar na direção do outro"

(Frei Betto)

domingo, 8 de julho de 2012

Leitura em voz alta destes dias

Penso que leituras só fazem verdadeiro sentido no momento exato. Especialmente aquelas em que as palavras trazem poesia. Ontem, hoje e os amanhãs imediatos deram sentido pleno à leitura em voz alta disso:

"Há mágoas íntimas que não sabemos distinguir por o que contêm de sutil e de infiltrado, se são da alma ou do corpo, se são o mal-estar de se estar sentindoa futilidade da vida, se são a má disposição que vem de qualquer abismos orgânico - estômago, fígado ou cérebro. quantas vezes se me tolda a consciência vulgar de mim mesmo, num sentimento torvo de estagnação inquieta! Quantas vezes me dói existir, numa náusea a tal ponto incerta que não sei distinguir se é um tédio, se um prenúncio de vômito! Quantas vezes...

Minha alma está hoje triste até ao corpo. Todo eu me dôo, memória, olhos e braços. Há como que um reumatismo em tudo quanto sou. Não me influi no ser a clareza límpida do dia, céu de grande ar puro, maré alta parada de luz difusa. Não me abranda nada o leve sopro fresco, outonal como se o estilo não esquecesse, com que o ar tem personalidade. Nada me é nada. Estou triste, mas não com uma tristeza definida, nem sequer com uma tristeza indefinida. Estu triste ali fora, na rua juncada de caixotes.

Estas expressões não traduzem exatamente o que sinto porque sem dúvida nada pode traduzir exatamente o que alguém sente. Mas de algum modo tento dar a impressão do que sinto, mistura de várias espécies de eu e da rua alheia, que, porque a vejo, também, de um modo íntimo que não sei analisar, me pertence, faz parte de mim.

Quisera viver diverso em países distantes. Quisera morrer outro entre bandeiras desconhecidas. Quisera ser aclamado imperador em outras eras, melhores que hoje porque não são de hoje, vistas em islumbre e colorido, inéditas a esfinges. Quisera tudo quanto pode tornar ridículo o que sou, e porque torna ridículo o que sou. Quisera, quisera... Mas há sempre o sol quando o sol brilha e a noite quando a noite chega. Há sempre a mágoa quando a mágoa nos dói e o sonho quando o sonho nos embala. Há sempre o que há, nunca o que deveria haver, não por ser melhor ou por ser pior, mas por ser outro. Há sempre...

Na rua cheia de caixotes vão os carregadores limpando a rua. Um a um, com risos e ditos, vão pondo os caixotes nas carroças. Do alto da minha janela do escritório eu os vou vendo, com olhos tardos que as pálpebras estão dormindo. E qualquer coisa de sutil, de incompreensível liga o que sinto aos fretes que estou vendo fazer, qualquer sensação desconhecida faz caixote de todo esse meu tédio, ou angústia, ou náusea, e o ergue, em ombros de quem chalaceia alto, para uma carroça que não está aqui. E a luz do dia, serena como sempre, luz obliquamente, porque a rua é estreita, sobre onde estão erguendo os caixotes - não sobre os caixotes , que estão na sombra, mas sobre o ângulo lá ao fim onde os moços de fretes estão a fazer não fazer nada, indeterminadamente."

Fernando Pessoa em Livro do Desassossego

domingo, 13 de maio de 2012

Sobre a descrença no eterno...

Se eu quero um amor de vida inteira?
Quero a vida, ela em si, ela toda, ela inteira

Se eu quero alguém com quem compartilhar as projeções
e os planos-sonhos-dores de amanhã?
Quero alguém pra viver comigo um sincero-hoje sem frustrações
com quem compartilhar o sorriso da próxima manhã.

Se é o longe que planejo
É o perto imediato que vejo
e vivo
           sinto
                    modifico
                                   choro
E sinto ser todo meu nesse momento-verdade
Que é mais doce e longo que a projeção de uma eternidade.

Misturebas do caderninho vermelho - sobre a solidão, as cidades, a poesia e a revolução

"A mais insignificante partícula de vida tem mais valor do que tudo que escrevi" (Maiakovski)

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"Essa coisa de nos sentirmos profundamente sozinhos será essência humana ou circunstância social"

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"Eles são muito revolucionários pra fazer qualquer coisa" (Juliano Gentille)

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"As cidades nos esmagam? Elas são sujeitos do processo ou sua representação? Lidar com a cidade é lidar com o nosso jeito-de-viver"

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"A liberdade é vivencial, não é teórica. A liberdade ou se vive ou mal se entende dela" (Luiz Telles)

Escritos curtos de viagem (2)

"Experiência, vivência - não se transmite.

o que não se transmite?
- há coisas que só se pode experienciar, não se pode transmitir.
- haverá coisas que, ao contrário, só se pode transmitir, não se pode experienciar?
o que, então, se transmite?"

(São Paulo - Montevideo)

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"No dejes de soñar, pero sueña de cara a la vida"

(Montevideo - sede do grupo El Galpon - frase de Athualpa del Cioppo)

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"Pra frio na alma não há cachecol"
(Montevideo - São Paulo)

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"Encontrar-se com a falta de sentido não é problema. É problema seguir nela"
(Franca)



Sobre o raro

O amor fica mais raro quanto mais nos tornamos acúmulo de coisas. Quanto mais acumulamos experiências, expectativas, frustrações, lembranças, dores... maior o muro a ser quebrado para nos colocarmos plenamente frágeis à disposição do encontro com o outro. Plenamente expostos. Verdadeiros. Apaixonantes, apaixonados. Entregues.

Somos isso poucas vezes.

terça-feira, 27 de março de 2012

Escritos curtos de viagem

"Pareceu-lhe tão inútil explicar as coisas pra fora que cogitou ficar uma semana sem falar. Um ano. Então, o telefone tocou, chamando para uma reunião."

"As máquinas, imensas, pareciam esqueletos de dinossauro. O formato, a cor. Mas um esqueleto de dinossauro teria mais sentimento."

quinta-feira, 22 de março de 2012

Rabiscos sobre brilho nos olhos e tamanho do tempo

Aos 16 anos, Ana teve brilho nos olhos e ingenuidade suficientes para perguntar ao seu primeiro patrão: "Por que o senhor rouba as melhores horas da minha vida?". O Patrão riu com surpresa e disse que não seria a vida toda, só alguns anos...


A próxima vez que teve brilho nos olhos, tinha 60 anos e comemorava a aposentadoria com vinho no copo de requeijão. "Até que passou rápido...", pensou. Sentou-se no sofá e morreu do coração.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Isso é comigo

Ela andava no escuro porque era melhor pra conseguir não ver nada.


E pensava nas pessoas próximas a quem mandar um sinal de fumaça pra que pudessem enviar-lhe pelos Correios pedaços de coração.

No fim, não fazia fumaça, nem fogo. Nem acreditava nas pessoas mais. Pelo menos não pra tapar buracos de ar com pedaços de coração.

Tem um certo tipo de intimidade - um tipo que permite prever, reconhecer, esgotar um certo tipo de sensação que vem de-dentro-pra-fora-pra-dentro - que só se tem com uma pessoa: consigo.

Acendeu a fogueira só lá dentro - pra não incomodar a escuridão. Ouviu o próprio sinal de fumaça. E esperou queimar o que já sabia estar seco.

terça-feira, 20 de março de 2012

Da memória dos lugares

Lugares guardam memórias por muito tempo, nos seus contornos, nos seus cantos, nos seus cheiros, nos seus mofos. Às vezes, porém, guardam memórias curtas, substituídas por outras ao longo do caminhar. Outras vezes, ainda, a memória de um lugar se apaga devagar até terminar por completo, como se nosso corpo dissesse: "melhor deixar isso do coração pra fora".


Lúcia vivia numa casa de cercas brancas. Vê-se pelas fotos de criança barrigudinha. Na casa de cercas brancas apaixonou-se pela primeira vez. Na casa de cercas brancas, viu seu pai ser levado por militares para nunca mais voltar. E esqueceu-se do primeiro beijo. Depois lembrou-se. Depois esqueceu-se. Se passasse hoje pela cerca branca, Lúcia veria somente uma cerca branca. Talvez a achasse bonita.

terça-feira, 13 de março de 2012

Sofá

Chega, então, um dia em que a tristeza se senta.


E, como todas as coisas no mundo que não significam uma coisa só, isso significa pelo menos duas coisas:

1. Daí em diante não haverá mais desespero. A tristeza será calma, aconchegante.

2. Ela vai ficar por um bom tempo.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Interlocuções com o Paraguai que o Fabrício está (vi)vendo...

Era uma vez uma moça.
Tinha todas as sortes que uma moça poderia ter, deveria ter. Bonita o suficiente, bem-sucedida-profissionalmente o suficiente, bem-casada o suficiente. Sobre si mesma, construíra dia a dia a imagem da realização. E construíra-se sobre esta imagem. Até nascer a primeira ruga, a primeira demissão para ser substituída por um homem, a primeira desconfiança de "traição". E, se não podia mais ser a imagem pura da realização, o que lhe restaria? Sua identidade dissolveu-se.

Era uma vez um país.
Tinha todos os problemas que um país poderia ter, deveria? Tinha perdido guerras o suficiente, terras o suficiente, patriotas o suficiente. Sobre si mesmo, construíra século a século a imagem da derrota. E construíra-se sobre esta imagem. Até perder mais uma disputa, até que um vizinho lhe roubasse novos territórios líquidos, até perder mais patriotas virando cruzes na beira das estradas. E, se não conseguia mais desejar outra imagem que não a imagem da derrota, o que lhe restaria? Sua identidade fortaleceu-se.

Era uma vez uma forma de vida.
Tinha todas as contradições que uma forma de vida poderia ter, todas? Tinha crueldade o suficiente, desejos o suficiente, frustrações o suficiente. Sobre si mema, construíra a imagem do natural. E construíra-se sobre esta imagem. Até despontar alguma bondade, até realizar-se algum desejo, até vivenciar inteiramente alguma frustração. E se, confrontada consigo, não podia mais ser a imagem do natural, nem desejar ser qualquer outra imagem pura, o que lhe restaria? Sua identidade transformou-se. E de novo. E de novo. E de novo. E reconstruiu-se sobre a imagem da realização, da derrota, do naturalmente mutável.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

sem

tem dia que cai do céu gota de saudade 


cai fininha, cai em tempestade.

tem dia que salta de dentro choro de saudade

salta fininho, salta em tempestade.

tinha dia que a rua alagava

onda pequena, enxurrada fria

felizes que estávamos
a gente ria, 

sorria,

seguia

hoje a rua alagou

o coração pequeno também.
forte que estou

ri,
sorri,

segui,

mesmo sem (...)

domingo, 29 de janeiro de 2012

Bagagem

Um poema emprestado pra compartilhar por que eu entendo cada passo-pedalada.


Bagagem
de Alberto da Cunha Melo

Uma viagem
para resolver a tristeza
e não os negócios.
As malas cheias
de roupas novas
e livros adiados.
É preciso partir numa noite de chuva,
para que as árvores de nossa terra
(de repente belas)
não nos agarrem,
não façam chantagem
com nossa provável
e discutível ingratidão.
A mulher adiada
deve ir também:
não há passaporte que consiga
embarcar o tempo perdido.