sábado, 24 de maio de 2014

Na rodoviária

Na plataforma,
Motores ligam, roncam, desligam
Parados, em direção a infinitos destinos.

Na TV,
machistas ensinam mulheres sobre:
shortinho estampado, paetê, sobremesa e traição.

Na Ucrânia,
5 mortos seguram armas numa foto posada
Enquanto na Tailândia,
golpe militar ganha apelido de crise.

No Itaquerão,
1 morto.
Oficial.
Sua memória é celebrada com coro de cornetas verde-amarelas
Enquanto ricos se sentam sobre escombros de casas
Para ver milionários brigando - mas não muito -
Pela posse.
Da bola.

Na poltrona ao lado,
Mulheres mergulham de cabeça nos seus celulares
E enviam mensagens de amor-próprio para si mesmas.

No colo do tio,
o bebê baba de desprezo
pelos problemas que inventamos e adubamos
E em seu sono profundo
escolhe o sonho de nascer outra vez,
num mundo menos besta.

No peito do vendedor de água,
#vaitercopa
#Brasilcampeão
E o formoso céu, além de límpido,
do alto do lábaro estrelado,
ri da cara sem-dente do homem.

No reino da vida longa,
uma velhinha boiadeira
mistura, ousada, estampas de onça pelo corpo.
Seu rosto - europeíssimo, olhos azuis -
é também ele "de onça",
onça sardenta, guardião da memória
que transporta enrolada
no seu cachecol vermelho,
bordado a dedo.

No vidro sujo,
o reflexo embaçado,
é meu retrato mais verdadeiro possível.
Hoje.

Na mancha velha,
A memória faz lar,
doce, nojento,
E exibe, suja e manca,
novos e velhos caminhos,
encontros recentes e antigos,
acenos de saudade e alívio
uma lágrima única
com gosto de chuva.
ácida.

Na chuva,
As nuvens descem em visita
Logo, se arrependem e escorrem pros bueiros
Escondendo-se de tanto nada

Na espera,
Os corpos sentam em si.
E esquecem o que esperam realmente
Enquanto fingem esperar o tempo...
o ônibus...
o outro...

Alerta

Os caminhos são tantos
e nenhum
E eu não sei por onde.
Mas meu corpo, muitas vezes,
me sussura, de canto
"por aí, não"
aos prantos.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Sobrevivências, tecidos e imprevisibilidades

Terapia-amiga de sobrevivência

Homeopaticamente
Eu vejo amigos
e me apresso:
é preciso desembuchar, desentalar, todo o engolido sem sentido.

Antes que chegue a hora
de engolir absurdo velhos - travestidos de novos
Antes que chegue a hora
de sacolejar no trem - cochilando e batendo a testa no vidro
Antes que chega a hora
de cumprir compromissos - de trabalho, de estudos, de tudo, de todos

É preciso aproveitar
o período da consulta
a terapia amiga de emergência
a falação-sobrevivência

Não há tempo pra silêncio
solidão compartilhada,
um belo tanto de fazer-nada,
ou coisa que o valha.

É preciso,
já com o soca vazio, agora,
correr
correr
correr
pra encher-me com os vazios novos
- os velhos absurdos travestidos de novos -
que esperam ansiosos
porta afora.


Imprevisíveis

O papel em branco me ri
_ Então você resolve o mundo
- seus assombros e seus escombros -
com garranchos mal rimados
entre os avisos sonoros do metrô?

"Crianças são imprevisíveis"

Eu também, moço.

Agora mesmo, tem uma vontade de ação
explodindo dentro de mim.

Mas primeiro preciso ir ali curar
os pontos mal costurados
e cicatrizar as narinas
pra voltar a farejar bem.


Fiando dramaticamente

Tecer
um figurino justo
nos pontos delicados - cuidado
nos pontos de resistência - força
nos pontos fracos - abraço.

Inventar
um personagem complexo
que nos diálogos quebre as paredes
e na presença se conheça por dentro
e no contato seja um pouco o outro.

Limpar
a cara e as olheiras dos excessos
das maquiagens estratégicas da fala
dos modelos enlatados da cabeça
das expectativas e acordos do silêncio.

Limpar, inventar, tecer
junto e só
uma vida colada na vida,
recriada, sonhada, minuciosamente erguida
sobre a base de um monumento ao
con
fiar.

E fiar - antes -
com
igo
insistentemente.

sábado, 17 de maio de 2014

Espelhar - atravessar


Corpo-espelho
Nos seus olhos de sol
me revelo
imagem nítida do eu
sobreposta ao mundo embaçado

Alguma violência no abraço
espelha tanta violência repressiva na vida
E, por outro lado - conforto -
me isola e refugia.

Me vejo tão profunda no reflexo
que me assusto, reajo, nego
E, por outro lado - conforto -
me apaixono e apego.

Seu rosto contra as luzes dos prédios
É meu rosto contra as nuvens confusas
Seu corpo exausto das lutas de todo-dia
É meu corpo cansado do enfrentamento cotidiano comigo

Você - eu - me move e me conforta
Me raiva, me medo, me amor sem fronteira.
Me pára.




e impulsiona.

Sim, se quebro o espelho, rompo a pausa.
Mas pauso também o movimento.

Haverá - logo, urgente - meios de atravessar o espelho
e estabelecer um equilíbrio dinâmico?

Poema-melancolia-da-pedra-na-minha-cabeça



Eu queria ter atirado uma pedra
Uma, pelo menos.

Na cabeça.

Na cabeça da Copa, na cabeça da FIFA, na cabeça da especulação imobiliária, na cabeça dos ordenadores de despejos, na cabeça dos que executam despejos, na cabeça dos queimadores de favelas, na cabeça dos cabeças-de-planilha, na cabeça dos medrosos encatracados, na cabçea dos privatizadores de corpos e vidas alheios.

Mas a mira não tava boa.
E eu não consegui acertar na cabeça,
tantas cabeças que a cabeça era.

A pedra, então, atingiu o vidro do banco,
Não, quer dizer, o vidro da loja de televisão,
Não, quer dizer, o vidro da viatura.

A pedra, na verdade, nem saiu da minha mão.
A pedra - que pena! - nem saiu do pavimento.
Meu corpo - que peso! - nem saiu do trabalho a tempo.
Tão eficaz foi o policiamento
Em sua função de sufocar - a gás - vidas e pedras
E mantê-las - as vidas e as pedra - longe dos vidros.

E devolver a multidão
pra fora das ruas
E correr logo com as vidas
pra dentro da prisão domiciliar
dos cantinhos privados.

...cada vez mais cantinhos.
...cada vez mais privados.

Em processo

Sobre  a estabilidade
sua inexistência, nossa insistência

Sem parada.
Não tem estação, cais, recreio, ponto de ônibus.
Não tem banquinho com encosto pra sentar e olhar
a gente mesmo passar.

O movimento - nos pés e no peito -
é cambalhota até a tontura repetida,
balanço de frio na barriga,
7 curvas de estrada estreita,
trens que se cruzam no auge da velocidade,
espiral compulsória.

A estabilidade - nos pés e no peito -
não combina com o tempo
não combina com o vento
não combina com o som
das asas
dos seres novos
batendo.

É impossível
- ou é busca, ou ilusão, ou vício
e nos três casos, é mentira,
é loucura admitida
como um horizonte emoldurado
que aprisiona o próximo passo.


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Pedacinhos de pessoa desencontrada do seu poder

No ringue

Dente de leão
Origami de papel de seda
Pólen

Meus farelos caminham
sobre saltos
sobretudo
cachecol e óculos escuros
maquiados

O cheiro cítrico
da força dos novos cachos
ilude os outros, me golpeia

Parece
que venci o mundo
Enquanto sangro no chão
esperando o juiz contar até mil.


***

Cimento


"Quem você pensa que é?"
Pergunto eu,
pra mim,
enquanto o ônibus chacoalha
minhas fraquezas
de estômago vazio
e anemia na alma.

Alma?
Sorrio. E chorro. Só por dentro.
Economizo as expressões dramáticas
e reservo o sorriso pras mentiras mal contadas
com que convenço os de fora
depois ensopo o travesseiro

As pedras na mochila já são cimento
Todos os de fora sofrem, surtam,
Eu não, eu aguento;
Eu-cimento.

Quanto mais as minhas fronteiras
se diluem a olhos vistos,
mais se estreitam e esmagam
o desejo de heroismo.