sexta-feira, 19 de setembro de 2014

em ruína

pedaço de pedaço de pedaço de caco
mosaico torto

um pedaço de mulher grávida
expulsa de casa
pelo dinheiro
em forma de gás

um pedaço de cérebro humano
expulso do mundo
pelo dinheiro
em forma de bala de metal

um pedaço de mim
expulso de mim
pelo dinheiro
em forma de mundo

um pedaço de ferida solitária
que acorda e dorme
sem cicatriz

e umas migalhas de humanidade,
aqui e ali

um pedaço de silêncio sem fim.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

enquanto

montanha russa sem freio
mais looping que calmaria
a trava de segurança quebrou
e o moço que cuida do liga/desliga
foi ali fumar um cigarro.

enquanto
a gente procura um horizonte pra fixar os olhos - e as esperanças
o carrinho desgovernado das urgências nos atropela.

enquanto a gente colocar o foco no carrinho das urgências,
um pôr-do-sol assombroso nos arranca o estômago e laça nossos olhos - e as esperanças e aquele desejo profundo de amanhãs.

enquanto a gente escolhe o que ser, tá sendo.
e enquanto é, tá escolhendo o que ser.

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

escritos de ônibus SP-RJ [2 *]

Movimento

Eu
corpo em trânsito.
Foram tantos

os meus corpos em trânsito!

Tem uma guerra
aqui dentro
Ela é do tamanho
do existir;

E é também minúscula
quando difusa na paisagem
aqui na janela
que mistura o agora com o agora há pouco e o daqui a pouco
me oferecendo
 
                      o movimento


***

à minha amiga que voou

vejo tuas asas
desenhadas nas nuvens leves
- e o céu está tão azul!

nós somos os vôos que fazemos
e os que não fazemos
- os vôos e os pousos

então, pouse suave, ave!
e deixe as asas preparadas, hein!
que o vento - ainda - te sopra...


***

Ousadia


Ousadia, meu filho, é abrir casa de umbanda em Aparecida


***

[do livro Voces Mapuches]

Dormitar


es hora
en que el fuego comienza a dormitar
abuela
Y el camino del cielo
me trae tu voz
desde las sombras

es hora de dormir,
me dices,
mañana otros pasos andaremos
porque otras son
las palabras en el día


*

En este suelo habitan las estrellas


En este suelo habitan las estrellas
En este cielo canta el agua de la imaginacion

Mas allá de las nubes que surgan
de estas aguas y estos suelos
nos sueñan los Antepasados
Su Espíritu - dicen - es la Lina Llena
El Silencio: su corazón que bate

*

{trecho}

Salí a perderme en los
bosques de la imaginación
(en eso ando aún)

*

{trecho}

cada una es diferente a la otra
cada planta tiene su propio espíritu


***

Da falta

A doçura que mora na tua mão
é do tamanho do espaço imenso
que sobra
ao meu redor
quando você não está.

O espaço-dentro. Quanto!

Sentir esses espaços é sentir que eles existem.
Sentir que eles existem é condição para sentir a alegria de tê-los repletos.
de nós.
e linhas.
e tal.


***

de volta à vila

os ipês da minha vila
dão flores amarelas
e cachos de tênis velhos
brotando dos cadarços encardidos

do lado de fora da Lotérica             fechada
as pessoas                  esperam
o início do horário comercial
pra comerciar a chance
da sorte
de uma vida mais tranquila

Eu
também espero
a sorte
de uma vida mais tranquila
de ipês amarelos.
e corro.

Você
também espera
a chance
da sorte
de uma vida mais tranquila.
e corre.

No meio das avenidas
nos encontramos
esfacelados das corridas
de algum jeito nos seguramos
mãos dadas, meio tremidas.
e rimos.

(eu caminho na minha vila cantando poesias dentro da cabeça pra os passarinhos ouvirem. aí, numa esquina, encontro uma criança fazendo qualquer coisa. e ela é poesia. eu guardo silêncio e próximo passo)

*

Ei, São Paulo
espelho do meu caos.
a belezura dos detalhes
com a crueldade do panorama.

e sol!

o sol entra pela porta do metrô
pelo vidro não-arrebentado da janela da sala
pelo peito
e narinas

e vira o cansaço do avesso
e vida!
terminal.


* o 2 do título refere-se a este 1 aqui ó:
http://pedacinhosdemundo.blogspot.com.br/2013_11_01_archive.html


sábado, 6 de setembro de 2014

carne moída

a carne moída
a pessoa afastada da vida

a alma ferida
a pessoa desperdiçada na corrida

do que corremos?
para que corremos?

o que paralisamos dentro pra correr assim?

o que congelamos no entre porque não há tempo de regular o foco e desembaçar os sonhos comuns?
o que abandonamos das histórias que poderiam ser feitas em nome do que se tem que fazer?

***

essa coisa que se passa aqui dentro não sou eu
mas me molda
essa coisa que se passa aqui dentro é acúmulo
são vozes, medos, pressões, padrões
tudo junto-misturado num xurume
num não-saber, não-querer ser mais
e acabar sendo, todo mundo, só isso.
injustos, carentes, egoístas, possessivos, cansados.
carentes.
com um puta medo de perder a gente mesmo
quando já perdemos os vínculos comuns.
com um puta medo de nos perder dos outros
quando já nos perdemos de nós.
medrosos.
carentes.
e cada carinho é tudo e nada.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

esqueci de te contar

enquanto eu olhava pro vazio
pro só e pro entre
e rabiscava a tela do computador
com sal de lágrima

aconteciam coisas aqui

esqueci de te contar
deve ter sido a correria, o calor, o frio, o trabalho, o telefone que quebrou
deve ter sido a falta
de foco, de tempo, ou a falta de amor, de compromisso, de vergonha na cara, de...

ou deve ter sido o excesso
de trabalho, de carro, de barulho, de louça suja, de gente, de desejo, de planos bagunçados, de expectativas, de opinião, de trabalho, de trabalho, de trabalho...

enfim, esqueci, esqueci

mas, olha, aconteciam mesmo coisas aqui

e eram lindas

acontecia gente fazendo malabarismo com a vida, no farol e na varanda, como se ela fosse boa no fim das contas. aconteciam mulheres autônomas e incríveis educando filhos educadores. aconteciam amigas curando com florais, com olhares, com sopa de legumes, com sambas no bexiga. aconteciam mergulhos no fim do mundo pra encontrar o encanto das histórias que vale a pena escutar até dar tontura. acontecia o amor desenhado com os dedos no ar, no corpo, no espelho do banheiro, no vidro do busão, enquanto plantas improváveis floresciam nos quintais ou dentro das jarras de água. acontecia até tartarugas nadando dentro do metrô. acontecia cheiro de vick e lembranças de vó. aconteciam mulheres de 100 anos aconselhando loucuras. aconteciam parcerias de vida inteira transformadas e reafirmadas em olhares e silêncios tagarelas no meio da multidão. aconteciam dias de sol em que o próprio sol pedalava pela cidade, sorridente, entre barbas. aconteciam escaladas em amoreiras gigantes em que era possível olhar o mundo do alto dos 7 anos e entender tudo como se fosse simples.

além da dor, do ladinho dela, aconteciam muitas coisas por aqui.
e elas eram assim absurdamente, doidamente lindas e felizes.
desculpa, esqueci de te contar.