quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

para o outro lado

olhar para o outro lado
radicalmente
sem nunca mais virar o rosto
pra ver esse eu imposto.

olhar para o lado oposto
pacificamente
e ver diluir-se
no universo da minha pálpebra fechada
qualquer resto de coisa que não sou eu.

olha para o outro lado
silenciosamente
e
 ufa
   ver dentro

Ele

Ele fala e morde o microfone do celular
até que o som da sua voz tome o vagão e a minha cabeça.

Ele fala e entra no celular
iluminado pela luz da presença ausente.

Ele fala sua canção indecifrável
e ele é tanta coisa, só por falar, sem pausa, durante 10 estações.

Ele fala e quanto menos entendo o que diz
mas entendo o que me significa.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

coragem

é,
se a gente só pisar no carpete do quarto, o pé não dói.

mas e a terra macia que tem entre um pedregulho e outro lá fora?

muda

Emoções são ondas.
Passeiam pelo corpo como pela areia da praia, variando intensidades, temperaturas, espumas.

Às vezes, param no estômago.
Às vezes descem pelas pernas e se misturam nas pedaldas.

Às vezes mar bravo, às vezes calmaria, às vezes tsunamis.
Mas a lua muda, a rua muda, a pessoa muda.

E somos todos tantos em cada um que um oceano seria pouco
e a maré é mesmo imprevisível.

Infinitas surpresas somos: eis nossa dor e nossa boniteza.


*

Habitada por cheiros,
gostos
pelos e temperos,
pedalo no meio da rua amores e medos
em equilíbrio.
Sou vida.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

susto

Tem surpresa de tanto tipo

com o tamanho da mentira dos outros
da desfaçatez dos outros
caradepau dos outros
ingenuidade dos outros
bobice dos outros
falta de cuidado dos outros
boniteza dos outros

No meio delas todas, das surpresas todas,
tem a surpresa com a gente mesmo

com o que a gente é capaz de pensar
de mudar
de sorrir
de enfeitar
de endoidecer
de cicatrizar
de regenerar.

às vezes eu penso que a gente é tantos
que devia ficar surpreso todo santo dia mesmo.

domingo, 4 de outubro de 2015

Boniteza

A lágrima cai aqui do lado.
Eu vi cair.
Vi escorrer.
Vi você dentro dela
piscando pra mim
e me dizendo que o mundo tá cheio de boniteza.

Não pode

Não pode.
Não pode vender
o que eles não querem
onde eles não querem
quando eles não querem
pra quem eles não querem
gerando um lucro que eles não controlam.

A polícia do metrô
está especializada
em apreender balas,
amendoim
e outras tranqueiras e delícias

A desculpa
é proteger você e eu
de ter dor de barriga

A lição
é mais direta
e é de dar dor de barriga:

"em terra onde manda o dinheiro
nem o comércio é livre"

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

manifesto do não sei

em nome dos buracos que enchem as calçadas de flores-surpresa
em nome dos sabores sem açúcar que enchem a boca de saliva nova
em nome dos vãos livres que enchem de horizonte a paisagem
em nome das malas vazias que enchem de leveza o percurso
em nome do menos-eu que enche de outros a vida.

para celebrar a flor que nasce no chapéu
para celebrar a pergunta que ainda não conseguiu nascer
para celebrar a cara de tacho do mestre superado
para celebrar a dor da dúvida
para celebrar o que se inventa por não se saber
para celebrar o que nos inventamos por não nos saber

evocando a calma-tempo que espera nascer a nova dúvida que vem depois da certeza
evocando a alma-espaço que não se contenta em deter nenhuma verdade em seu território
evocando os sonhos-delírio que sabem que não cabem, daí explodem, ilógicos
evocando os pés-penas, inchados, que calçados de caminhar tanto, decolam

para sermos maiores - e ao mesmo tempo do nosso preciso tamanho
para soprarmos as conexões cerebrais que revisitamos d.i.a.r.i.a.m.e.n.t.e
para mastigarmos as cercas feitas de palavras que dominam as prateleiras de saber

ateando o fogo, a coceira, a pulga, os dentes e dentaduras
convidando o abismo pro lado de dentro - e deixando o assovio do vento cantar a imensidão

pelo não sei
porque não sei

menos é mais

Venho aprendendo
a cada passo
a evitar que me conduzam
                         demasiado

A cada passo
A evitar que os ramos do meu bailar
                        sejam podados

que me peçam menos
que me peçam outra

mais discreta
mais cheirosa
mais depilada
mais normal
mais feminista
mais independente
mais desapegada
mais outra blusa
outro horário
outro sonhos
outro tempo
outra distância
outro desejo
outra loucura - que não a que eu sou

mais massacrada
mais ordinária
mais acostumada
mais arrumada
mais resolvida
mais psicoterapia
mais restaurante caro
mais detalhe
mais medo
mais indivíduo completo
mais eu - não eu-eu, eu esse-eu, que é o que tem pra todos

esse eu de prateleira
na forma certa
da loucura

mas não.
não vou.
não sou.
não sei.

minha loucura é minha
minha loucura é torta
vertical
como um dia de sol
sem sombra.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Amores, distâncias, montanhas russas

Essa distância
entre o quanto você está aqui dentro
e o quanto você não procura estar
é a angústia.

***

Amar
garante tudo.
E não assegura nada.

A voz
o desejo
os dedos
o hoje
o brilho
não estão no amar

estão na montanha russa.

estão naquela linha fina que divide o agora e o depois
e distingue uma vida da outra
aquela linha pontilhada no peito
que separa segurança e carência
ansiedade e costume
eu a você
meu tempo e o seu.

Amar
é tempo.

Tempo que gata anda muda corre gira dorme desperta dome (re)nasce vaga passa volta invade transborda.

                          qual é o amar de agora?



***

A montanha russa sobre
seus passageiros não têm rosto.
O trilho sem fim segue íngreme
os olhos dos sem-rosto não se encontram no horizonte
as mãos dos sem-rosto seguram tanto as travas que se diluem em metal

O sol nasce, mas quando chega o calor
não há mais corpos.

A montanha russa desce
Não há mais sol ou trilhos
Mãos de metal se buscam, frias.

Cair é como voltar a ter rosto.

Achados de outro feriado, perdidos no caderno

Feriado 

É feriado.
Trabalhamos.
A voz do metRô é a mesma de qualquer segunda-feira.
A moça brasileira e o tradutor inglês
não engasgam, nem bocejam.
Até os passarinhos brincam nas árvores
como em qualquer segunda-feira.

É feriado.
Caminhamos.
Pernas de ferro nos levam
rápido
pra longe de nós.
Mais rápido
pra mais longe.

Uns vamos à praia.
Outros limpamos banheiros.
Alguns encontramos segundos de vida viva.
Farejamos...


***

Faria Lima

A caminho do nada
a moça se arruma.
No espelhinho,
os cílios vão ficando pretos.
Os cabelos,
que nasceram pretos,
são agora loiros.

Tudo moldado
pelo nada.
para o nada.

A moça se arruma,
o mundo se arruma - no molde.

O sinal toca
pra fechar o espelhinho.
O destino chegou
e os cílios pretos de cabelos loiros têm pressa em direção ao destino.

O nada é a Faria Lima

terça-feira, 10 de março de 2015

Guilhermina 10.03

terror de hoje

Uma pessoa com uma caixa de papelão
É uma pessoa com uma caixa de papelão
Uma pessoa com uma caixa de papelão sou eu.
Sou eu mais uma caixa de papelão.
E sou eu menos um guarda-chuva.
Eu menos uma mochila, um celular, um pacote de biscoitos, um texto do Borges sobre o poder da palavra, uma escova de dentes, um holerite, uma casa esperando com a luz do quintal acesa.
Uma pessoa com uma caixa de papelão
É meu terror de hoje.

- do luminoso vermelho da igreja,
Chaplin me recomenda o sorriso e as lágrimas
contra o ódio e o terror.
Eu sorrio de volta. E garoô.
Como a cidade.
Tomo a cidade.


***

547

Do meio do vazio, o gato me olha
Do meio da terra, restos de tudo, ele olha
Não é pra mim que ele olha,
Mas pra casa que estava ali ontem. E antes de antes de ontem.

Das frestas das grades do portãozinho que restou
Que ainda leva, inútil, o número 547 preso aos restos de tijolos,
O gato olha.
E os olhos do gato miram memória.
_ Como deve ser triste ser dono de uma demolidora.

E ainda coloca-se placas disso.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

o mínimo

que pouco valem as palavras
quando a memória evoca o impossível
quando o que era não tinha nome e o que é não responde pelo nome de futuro

que pouco valem as palavras
quando as bombas explodem lágrimas
quando as ruas explodem festa e a festa de fora não arromba minha porta

que pouco valem as palavras
quando meu corpo e o outro não se tocam
quando, tocando-se, não se tocam
        sonhando-se, não se tocam
        chamando-se, não.

que pouco valem as palavras
sussuros escuros nos respingos de calhas furadas
na chuva breve de verão em terra de rio soterrado

que pouco valem as palavras
- no entanto, somos isso -
é o que tem pra ser.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Encantamento

Encantamento.
Como tirar o cimento?
terra?, catraca?, encanamento?
que controlam o fluxo
impedem os pensares
isolam os encantos
dos lados de lá do agora

Ar.

Como, como levantar as narinas
por entre as grades dos bueiros que nos contêm
e ser, finalmente, mato
dos que dão flores bonitas
nos cantos e nas brechas?

Inescapavelmente

Até queria ser mais você.
Era bonito.
Mas sou inescapavelmente eu.
E não é que não me escape!
Escapo. Transbordo. Desapareço.

Mas o ritmo do meu bater de asas,
tem uns dias,
é demais pra sua calma
pras nossas casas,
pro vagão lotado do metrô de manhã cedo.

Então madrugo.
E minha vontade de vida madruga comigo.
É lágrima minha vontade de vida. É vida.
Você
dorme.
Enquanto a madrugada me lambe, depois me leva.

Tempos-rio

Se a gente quebrasse o relógio
Se a gente comprasse um relógio
Se a gente inventasse um relógio.

Se a gente tivesse tempo
se criasse tempo
coubesse no tempo

Se esse tal de tempo fosse
mais rio
que poeira.

Desencaixe

Desencaixe.

De vida toda.
De tempo e de inteireza.
Toda.
Não cabe
e não poderia caber, né?
Não adianta sentar na mala
amassar o coleguinha no metrô
pedir licença pra emprestar um coração novo
não cabe.

Desencaixe.

Um dia consegue encaixar.
Os saltos altos.
Mas logo entorta.

Um dia consegue desertar.
Os pés descalços.
Mas logo retorna.

Um dia brincar com o tempo.
Amplia a vida.
Mas logo pede desculpa ao relógio e troca o pulso.

Um dia sonha até!
Navega.
Mas não quebra o despertador às 5 da manhã.

Um dia quebra um vidro.
Indigna.
Mas logo bota grade na janela da casa.

Um dia revida a cantada
Oferece a mesma face, virada
No outro, anestesia. Até ri da piada.
 

talvez amanhã

Talvez a chuva.
Talvez nos lave os cabelos
Talvez os medos, os olhos.

Talvez a chuva
Ao nublar os vidros
talvez desembace os sentidos

Talvez a chuva
Derrube os muros
talvez aponto o fluxo

Talvez a chuva
Embale um sono
De talvez despertar. Num amanhã. Outro.


Porcos

Porcos frenéticos
Dançamos sobre o asfalto
Sobre trilhos
Sacudimos as almas
Sorrimos para dentro
Enlouquecemos para dentro

Para fora, o nada.

Tocamos os outros
Mas não nos tocamos - nenhum de nós
Sequer nos vemos.

Em algum canto, um gesto bonito.
Mas sequer nos vemos
Não somos, de qualquer modo,
dignos de sermos vistos.
Somos pedaços. E perdemos pedaços.
A cada estação.