sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Caldinho de feijão

Tudo aconteceu por causa de um caldinho de feijão.

É. Foi a Alice que disse que ouviu o Seu Baltazar contar que o começo ao alvoroço foi, mesmo!, o feijão da Vera. Ou melhor, o feijão do Teobaldo. Melhor ainda, o feijão que o Teobaldo fez pra Vera. O Teobaldo trabalhava de noite e a Vera trabalhava de dia.
Eles davam seu jeito pra namorar no intervalo.

Num dia... Numa noite... num intervalo desses, o Teobaldo, que era bom de fogão, levou um caldinho quentinho pra Vera poder jantar.

A Vera trabalhava num baita predião e fácil é que não foi pro Teobaldo fazer o caldo chegar até ela, passando por tanta grade e tanta câmera sem esfriar.

O caldo era divino, mas a quantidade era demais pra Vera. Então ela pediu pro Lucio segurar as pontas e foi oferecer um pouco pro porteiro do predião do lado.

Muitas câmeras e grades depois, o caldo do Teobaldo foi tomado por todos os porteiros e porteiras dos prediões daquela rua.

Há quem diga que sobrou até pra congelar!

Há quem diga que a Vera fingiu que a receita era dela, só pra não fazer tanta propaganda do companheiro assim.

Há quem diga que o Seu João não tomou o caldo porque era um... cara alérgico a feijão.

E tem até o Dante, que garante que foi assim que começou a tal revolução de porteiros – aquela lenda que começa no incêndio e termina num churrasco?


Mas aí, é como sempre diz a Tereza, a história é tão antiga que ninguém mais tem certeza.

Multidão de pés na cabeça

Ela saiu de casa
e foi em direção
à árvore.

Era talvez o dia
mais frio do seu ano.
O tempo
mais frio da primavera.

No entanto, ela andou até a árvore, e a árvore, que tinha insônia,
contou a ela história milenares a noite toda.

Ela ouvia, sonâmbula atenta, enquanto seus dedos congelavam
e a sopa esfriava no fogão.

_ Você não é a única. Todas as mulheres antes e junto a você viveram o mistério de inventar-se.

Ouviu e ouviu histórias de invenções – Marias, Dandaras, Carolinas, Joanas, Silvias, Sônias, Sabrinas.

Amanheceu com os dedos quentes, deitada em uma cama quente feita de folhas.
Com os primeiros raios de Sol, voltou para casa acariciando as pétalas das flores que tinham nascido naquela noite na ponta de seus dedos.


A passos largos e lentos,
cheia de mulheres na cabeça,
sentia-se pisar a cidade
com uma multidão de pés.