terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Argentinas e eu

Os argentinos são generosos
Os argentinos são pessoas sem pernas que entregam cartões românticos no trem escrito "com você tudo é mais fácil" enquanto as gotas de suor descem no lugar das lágrimas.
Os argentinos são mendigos que doam moedas de um peso para outros pedintes, como que para deixar suas próprias vidas mais leves.
Os argentinos são pessoas que falam alto e têm filhos gêmeos que parecem uma pintura.
Os argentinos são pessoas que sabem sentar na grama sem canga e sem seres picados por formigas.
Os argentinos são pessoas que te oferecem chocotorta e assim sequestram seu coração para sempre.
Os argentinos são viajantes sérios em ônibus clownescos, com franjinha e pluma e led.
Os argentinos são pessoas que vão ao trabalho dentro de um busão que o Signey Magal ganhou do Sandro.
Os argentinos são mulheres que se equilibram em plataformas circenses disfarçadas de sapatos e usam garrafas de água congeladas para lembrar do inverno nos 38 graus de um janeiro.
Os argentinos são crianças que entendem português com o corpo, brincam de esconde-esconde "às escondidas", amam-se à primeira risa.
Os argentinos são mães que oferecem panqueques con dulce de leche como quem oferece bolachinha água e sal.
Os argentinos são pessoas que compreendem profundamente o doce de leite.
Os argentinos são pessoas que tomam vinham bom com gelo e acham que tudo bem.
Os argentinos são pessoas que fazem pão quando pensam fazer pizza e fica realmente muito bom.
Os argentinos são pessoas com o sentido de comum mais aguçado pelo toque republicano da grama dos parques em suas bundas.
Os argentinos são peruanos e bolivianos.
Os argentinos são mais chilenos do que gostariam os chilenos.
Os argentinos são mães que os milicos mandaram circular e que, em sua inteligência poética, até hoje circulam, todas as quintas-feiras, ao redor do monumento na Praça de Mayo, que já é delas por honra e direito, e onde - com suas vozes, cadeiras de rodas e sorrisos - podem inventar a presença sob qualquer crise, caminhando lado a lado com o tempo, vestindo seus lenços-pájaros.
Os argentinos são filhos de militantes assassinados criados por militares assassinos.
Os argentinos são pessoas jovens que presas ao lutar pelos direitos dos aposentados e mantidos presos por não terem o endereço fixo da casa onde não podem dormir porque não trem o trabalho para ter o dinheiro para pagar p aluguel para alguém que tem dinheiro para ter mais de uma casa.
Os argentinos são milionários que tem casas-bosque com barco na garagem e vista para o rio Tigre e sao miseráveis que se abrigam em barracos na margem da ferrovia que leva turistas para verem as casas dos ultra-ricos em passeios de catamaran promocionais.
Os argentinos são também a boniteza do Delta do Tigre e seu vento e das mil cores do pôr do sol que se esconde atrás de pastos, mansoes, casinhas e janelas de trem.
Os argentinos são aquela dança sensual que nasceu com as putas do porto latinoamericano e depois passou a ser dos guias turísticos que levam europeus que atravessaram o oceano para irem a cafés disfarçados de cafés europeus - e que no entanto segue sendo dançada no porto, na rua, nas bodegas livres dos dólares e dos chetos.
Os argentinos são a água que salta do chão nas praças e parques em direção as caras sorridentes das crianças e aos narizes incomodados dos perros.
Os argentinos são caipiras de Córodoba e caiçaras de Mar del Plata que se mudam a Buenos Aires e transformam pedacinhos da capital em cidadezinhas acolhedoras em torno de sua simpatia e de seus abraços com vida.
Os argentinos desenham a luta e a memória nos muros da cidade.
Os argentinos lutam como argentinos e perdem como latinoamericanos, colonizados e recolonizados de novo e de novo e de novo, e rebelados de novo e de novo e de novo.
Os argentinos são pessoas que atiram pedras, quebram coisas, cheiram gás lacrimogênio, tomam coca-cola, odeiam a coca-cola, sonham acordados e dormem exaustos.
Os argentinos sou eu.

(Os argentinos são muito mais coisas do que o que eu consegui ver em 20 dias de Buenos Aires. Considere isso ao ler.)